Celina Brod

O tratado de um marciano sobre Brasília

Por Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
[email protected]

Rufus foi o escolhido para descer. Ele não era um marciano de ambições elevadas, mas era conhecido pela sua curiosidade, perspicácia e espírito aventureiro. Rufus era perito em formular perguntas que ninguém se dava o trabalho de fazer. Sua mania de revirar as coisas incomodava, ele mantinha esse ar de quem se achava no direito de ganhar uma resposta decente. Um marciano treinado para a seguinte missão: aprender a lógica do formigueiro brasileiro. Com sorte, o objeto voador que lhe trouxe até a Terra não foi abatido, Rufus conseguiu pisar em terra firme. Seu destino? Brasília.

Com inteligência que funcionava por analogia e estatística, a missão de Rufus era ligar os pontos para encontrar padrões que se repetiam. Deparou-se com imensa aleatoriedade de escolhas, desejos, vozes e corpos. Corpos agitados, cansados, abraçados, sambando, rostos suados, preocupados, alegres e tristes. Todos iam ou voltavam de algum lugar, poucos pareciam apreciar onde estavam, a maioria tinha pressa em chegar em uma miragem que não conseguiam encostar. Rufus não demorou para perceber que havia lógica consolidada: o meu e o teu. Todos pareciam entender como funcionava; o tal do meu e o teu existia por toda a parte.

Por vezes, o meu e o teu eram divididos ou emprestados. Em alguns lugares o meu e o teu dividiam espaço com o que era nosso, nossa rua, nosso ônibus ou nossa escola. Mas o meu e o teu era uma lógica inescapável, tinha a minha família e a tua família, a minha bolsa e a tua carteira, o meu almoço e a tua sobremesa. Com frequência, o meu e o teu era intermediado por um retângulo feito de plástico, ele era usado quando o teu queria ser transformado em meu, às vezes no débito outras no crédito. Nem todos tinham aquele pedaço de plástico, uns tinham apenas papel e outros não tinham nada. Os que não tinham nada precisavam pedir a estranhos ou viver com o pouco que um tal de Estado entregava.

Rufus fez amizade no bar, percebeu que ali as pessoas também tinham a mania de observar e comentar. Descobriu que no cartão de plástico havia dinheiro e dinheiro era o que as pessoas recebiam por trabalho, negócios ou investimento. Trocavam entre si coisas que sabiam fazer e recebiam em valor para poder adquirir o que outros queriam vender. Uns ganhavam mais, outros menos. Para comer, dormir, vestir, passear, quanto mais alguém tinha, mais podia. O que determinava o valor era algo complicado: demandas e ofertas que subiam, desciam e dependiam de sinalizações, reputação e resultados.

Até que um dia, Rufus, tomando uma cachaça no bar da esquina, ouviu na TV os gastos do Mourão no cartão corporativo. Fez as contas, Mourão gastou R$ 80 mil por mês. Também ouviu que os políticos aumentaram seu próprio salário e que os deputados agora iriam receber auxílio aluguel de R$ 8,4 mil por mês, mesmo ganhando dez vezes mais que a formiga média operária. Rufus descobriu que os políticos transformavam o meu e o teu em deles através de impostos coletados. Eles se davam de presente um tratamento diferente e coisas que ninguém mais tinha o direito de ter. Foram escolhidos para servir a sociedade, mas frequentemente legislavam a favor dos seus próprios interesses.

Enquanto isso, Claudete, dona do bar, chorava nervosa com o aluguel, mais um mês que não iria conseguir pagar. O faturamento não cobriu as despesas do último mês, Claudete teria que pedir dinheiro emprestado ou trabalhar ainda mais. Rufus percebeu que o cartão de plástico da maioria obedecia a uma tal de mão invisível e todos precisam rebolar para garantir o "meu" com o que recebiam de acordo com o que faziam. O marciano deduziu que o universo político seguia suas próprias leis e próprio ritmo, girava em torno de si mesmo enquanto as formigas distraídas brigavam por partidos. Rufus foi levado de volta, perplexo com as obviedades injustas que ninguém dizia. Sentou de frente para as estrelas e começou a escrever seu pequeno tratado: a mão visível da política brasileira.

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Anterior

Uma onda de furtos e prejuízos

Deixe seu comentário